Urgência que não permite improvisos: Lei 10.639/2003 é discutida em Seminário na UFF de Volta Redonda

por Gabriela Moscardini

O Brasil é o primeiro e único país da diáspora negra que obriga, em escala federal, o ensino da história e cultura negra. A lei 10.639 está em vigor desde 2003, porém, depois de pouco mais de dez anos de implantação, discutir a obrigatoriedade e a prática do ensino regulamentado pela lei ainda é uma necessidade. Segundo pesquisa realizada em 2009 pelo INEP/MEC, no estado do Rio de Janeiro, apenas metade das escolas sondadas aplicam de forma sistemática e abrangente o conteúdo disposto pela lei. A situação hoje não é muito diferente. Num país com população composta por 54,74% de negros (Fonte: Censo IBGE 2010), a introdução dessa temática enfrenta problemas que vão desde a formação dos professores até o preconceito dos alunos em aprender sobre cultura negra. Pensando nessa problemática, o Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu, em parceria com a Rede de Jovens Lideranças Jongueiras, realizou, no dia 17 de outubro, o Seminário Lei 10.639/2003: diálogos e movimentos de educadores, educadoras e comunidades jongueiras pela valorização da História e da Cultura Afro-Brasileira nas escolas.
O objetivo do Seminário Lei 10.639/2003 foi trazer o debate experiências de implementação da lei, do acesso de jovens negras e negros ao ensino superior, e o papel das instituições de ensino nessas discussões. Ao longo do seminário, as falas dos palestrantes deram força à luta do ensino da história e cultura afro-brasileira e contemplaram o auditório com exemplos práticos de ações pautadas pela lei nas escolas, tanto por parte de educadoras e educadores quanto por parte de comunidades de Jongo/Caxambu.

Os representantes da Rede de Jovens Lideranças Jongueiras Lucas Silva, João Paulo Silveira e Suellen Tavares abriram o seminário com Pontos de Jongo.

“O racismo silencia as outras culturas. É preciso descolonizar a educação”, afirma José Barbosa da Silva, representante do Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira, o PENESB. José Barbosa coordenou a primeira mesa do Seminário Lei 10.639, realizado no Campus de Engenharia Industrial Metalúrgica da UFF em Volta Redonda, RJ. Sua fala trouxe o questionamento da dificuldade de os professores e alunos se desprenderem do conceito do belo greco-romano, ou seja, o branco e europeu, que permeia a educação. Junto a ele estava Luciana Adriano e Fabiana, educadoras e quilombolas, Sérgio Alves Zacarias, militante do Movimento Negro de Volta Redonda, João Alípio e Maria Clara Martins, do Coletivo Cultura Negra na Escola, e Lúcio Sanfilippo, professor de educação física e cantor.

Sérgio Alves Zacarias foi o primeiro a falar na mesa da manhã

Para Luciana e Fabiana, não basta introduzir de qualquer maneira o ensino da cultura negra nas escolas, é necessário adequar o conteúdo à realidade dos alunos e discutir criticamente o que isso representa na vida deles. O que está sendo aplicado e dando muito certo no Quilombo Santa Rita do Bracuí, em Angra dos Reis, onde as duas educadoras trabalham e vivem, é trabalhar com a escola a história do próprio quilombo e também do Jongo, muito praticado na comunidade. Além disso, ressalta Fabiana, a lei está possibilitando questionar papéis: “Por que só quilombola pode ser pesquisado e não pesquisador?”. Pensar o quilombo e o jongo é também estudar o sistema agro-florestal, as Diretrizes para a Educação Quilombola, as relações étnico-raciais, a história da África e da diáspora africana. Trazer essa cultura, que faz parte do dia-a-dia dos alunos, para escola, para a vida dos funcionários e dos professores não é só uma maneira de combater o racismo como também é, segundo Luciana, uma forma dos próprios alunos se enxergarem no material e nas atividades didáticas e se sentirem representados.

Os futuros educadores João Alípio e Maria Clara trouxeram relatos da experiência do Coletivo Cultura Negra na Escola, que surgiu na UFF e hoje mobiliza alunos de diversos cursos. Para eles, a educação formal é um espaço de disputa política e cultural e levar a cultura afro-brasileira para dentro das salas de aula é não só discutir preconceitos e desconstruir no aluno e na aluna perspectivas racistas, como também é fazer com que eles aprendam sobre a própria história e cultura. História e cultura essa que, para José Barbosa, as pessoas ainda têm dificuldade em aceitar que existe.

Jongo dentro do auditório após a primeira mesa

Os alunos e alunas da Escola Municipal Cortines Cerqueiram de Barra do Piraí, Rio de Janeiro, e que fazem parte do Grupo Sementes da Memória apresentaram uma bela roda de Jongo antes do início da segunda mesa. 

Comunidades jongueiras e a lei 10.639/2003

Muito se discutiu no Seminário sobre como trabalhar na prática a história e cultura negra nas escolas e, pensando nos diálogos e movimentos das comunidades jongueiras com a lei, os representantes Maria de Fátima, a Fatinha, do Jongo de Pinheiral e do Centro de Referência de Estudo Afro do Sul Fulminense (CREASF), Maria Luiza Marmello, da Associação Cultural Jongo da Serrinha, do Rio de Janeiro, Alessandra Ribeiro, da Comunidade Jongo Dito Ribeiro, de Campinas, SP, e Márcia Cunha e Laudení de Souza, do Jongo Mistura da Raça, de São José dos Campos, SP, foram convidados a falar. Na mesa coordenada por Mônica Sacramento, representante do PENESB, convidados e convidadas trouxeram suas experiências.

A segunda mesa do dia abordou as ações das comunidades jongueiras em diálogo com a Lei 10.639/2003

Maria de Fatima, a Fatinha, relembrou o quão importante é o Jongo estar dentro da escola. Para ela, conhecer a expressão artística vinda da Angola com os negros escravizados possibilita um diálogo sem racismos e preconceitos. Maria Luísa, da Serrinha, relatou uma experiência positiva do projeto “Jongo na escola”, mas assegura que existe rejeição principalmente por intolerância religiosa. Alessandra Ribeiro enriqueceu a mesa com a metodologia da comunidade em aplicar a lei: fazem uso, basicamente, da mitologia africana para ensinar agricultura e educação ambiental. Mas ressalta uma problemática da lei que visa superar racismos e preconceitos. “A lei fica ainda mais difícil de ser aplicada quando é falada por negros. Pelos brancos é aceito, mas eles contam sem ter feito parte da história”, afirma. A representatividade negra de educadoras e educadores nas escolas não é expressiva e nas universidades, professores e professoras negras não passam de 1% na maioria das universidades públicas do Brasil. A importância de fazer esse sistema de representatividade funcionar traz a necessidade de ocupar efetivamente esses espaços de dominação racial e a necessidade de políticas públicas e afirmativas que funcionem.

Outras questões como a regulamentação da lei e sua fiscalização, a capacitação de professores e o descaso e despreocupação em fazer com que ela se torne, de fato, um componente curricular foram levantadas. Mas, dos exemplos de práticas que deram certo, o público entendeu como a Lei 10.639/2003 pode ser um agente poderoso de transformação social e que a temática é tão importante e necessária, que não permite improvisos.

Uma grande Roda de Jongo finalizou o Seminário Lei 10.639/2003. Jongueiras e jongueiros, professores e professoras, estudantes e os demais participantes do Seminário entraram na roda que aconteceu próxima a UFF, no Memorial Zumbi dos Palmares.