06 de Maio, dia de educação e reparação no Vale do Paraíba

06/05/2017 - Um dia para não esquecer e para aprender. Dia de fortes emoções, sensações, e ensinamentos. Não sem dificuldades, obstáculos e conflitos, como são os processos educativos para aqueles e aquelas que decidem enfrentá-los. Assim, conseguimos cumprir a programação do dia.

Fomos ao ato simbólico de assinatura do Termo de Ajustamento Conduta (TAC), na Fazenda Santa Eufrásia, em Vassouras (entenda o caso). Da Universidade Federal Fluminense (UFF), partiu uma van com integrantes das equipes do LABHOI (Laboratório de História Oral e Imagem), do Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu, e do PENESB (Programa de Educação Sobre o Negro na Sociedade Brasileira).

A entrada principal da fazenda estava fechada. O único caminho que nos levava ao nosso destino era a antiga entrada, do século XIX, uma estrada de terra, cheia de buracos, bastante prejudicada pelas chuvas, e pela qual não passava a maioria dos carros que se enfileiravam levando representantes da sociedade civil, do poder público, e de comunidades negras, jongueiras, e quilombolas da região. Deixamos os carros no início da estrada, alguns seguiram a pé, enquanto uma caminhonete aberta do Ministério Público Federal (MPF) em Volta Redonda ia e voltava pela estrada, conduzindo todos e todas ao destino.

O caminho foi difícil, é verdade. Entramos na fazenda pelos fundos, é verdade. A proprietária da fazenda, senhora Elizabeth Dolson, que nos receberia para a assinatura do TAC, não compareceu, por problemas de saúde, e estava representada por seu advogado. A cobertura da imprensa também chegou. Estávamos finalmente lá, reunidos, para cumprir o primeiro compromisso de nossa programação.

Lá também estavam os tambores centenários do Quilombo São José da Serra, que soaram para dar início ao ato simbólico de assinatura do TAC, que já havia sido formalmente assinado na terça-feira, dia 02 de maio, no MPF em Volta Redonda. Ouvimos o Dr. Júlio Araújo, procurador do MPF, que nos falou sobre o TAC e sobre a importância daquele ato simbólico na Fazenda Santa Eufrásia. Ouvimos o advogado da fazenda, Murilo César Pereira Baptista, que justificou a ausência da Srª Elizabeth Dolson e falou de sua disposição em cumprir o que está estabelecido no TAC.

Após a licença e benção de Fatinha (Maria de Fátima da Silveira Santos), liderança jongueira de Pinheiral, que saudou seus ancestrais e saudou Mestre Cacalo, jongueiro de Vassouras, falecido no final do ano de 2015, Toninho Canecão (Antônio do Nascimento Fernandes), do Quilombo São José, nos falou sobre a importância daquele momento para o povo negro. Disse que quando seus antepassados ali viveram e trabalharam não podiam falar e não tinham como garantir seus direitos, mas que hoje seus descendentes podem falar e contar com instituições e iniciativas como aquela, como forma de reparação e de garantia de direitos.

   

O TAC foi então assinado pelas partes envolvidas e contou com a assinatura dos presentes como testemunhas. Ao final das assinaturas, uma pequena parte do texto do TAC foi simbolicamente lida: os dez primeiros nomes da lista de 162 pessoas escravizadas na Fazenda Santa Eufrásia. Enquanto Fatinha lia cada nome, por iniciativa de Pedro D’Água Limpa, do Jongo de Pinheiral, todos falavam “Presente”! Momento de grande emoção, de saber os nomes e as relações de parentesco das pessoas que ali viveram, das pessoas que até então eram chamadas apenas de “escravos”, mas que têm nomes e têm história.

Mestre Pedro D'Agua Limpa

A roda de Jongo ao final da cerimônia saravou a terra que pisávamos sob o sol que apareceu para nos aquecer e saudar. Foi uma pena que a senhora Elizabeth Dolson não estivesse presente naquele momento de celebração da ancestralidade, em que os sons dos tambores e dos pontos cantados na roda renovavam nossas energias e nos enchiam de esperança!

As dificuldades de acesso à fazenda no início da manhã atrasaram muito nossa segunda atividade, a aula pública com a Professora Iolanda de Oliveira, do PENESB, sobre Racismo e Educação, que também seria a primeira aula de um dos itens do TAC, uma capacitação da senhora Elizabeth Dolson e das pessoas que com ela trabalham sobre a história e a cultura das comunidades negras da região. Esta atividade foi realizada no PIM (Programa de Integração pela Música), que generosamente nos acolheu em Vassouras, o que exigiu ainda um tempo de deslocamento da fazenda ao centro da cidade.

Pelo adiantado da hora, optamos por juntar a segunda com a terceira atividade programada, a aula pública com a roda de conversa com Dr. Júlio, Fatinha e Toninho do Canecão sobre o TAC. Foi uma ótima roda de conversa, com intervenções significativas. Fatinha saudou Claudia Mamede, irmã de Mestre Cacalo, que nos aguardava no PIM. Após as três falas, Professora Iolanda nos fez compreender o TAC como conteúdo de ensino nas escolas. Falou do TAC como instrumento de direito restaurativo, que possibilita a construção de novas relações sociais com reparação de danos às partes envolvidas, e como forma de enfrentamento de desafios existentes na desconstrução do racismo. Conversou conosco sobre o papel da escola, sobre a Lei 10.639/2003, sobre as teorias pedagógicas, sobre as relações entre ciências naturais, sociais e humanas, com as explicações genéticas sobre a origem do homem (na verdade, uma mulher negra nascida na África) e sobre as diferenças físicas existentes entre os seres humanos, assim como sobre como essas diferenças são tratadas nas relações sociais e resultam no racismo.

Professora Iolanda de Oliveira fala sobre a importancia da Lei 10.639 para o combate ao racismo

Ainda com relação ao racismo, nos falou do papel que todos nós, negros e não negros, temos no enfrentamento do mesmo e na sua desconstrução porque, em educação, em última instância, o que importa é promover o homem, tornando-o capaz de conhecer e transformar a sua realidade, para a liberdade, a comunicação, e a colaboração entre todos. Professora Iolanda nos mostrou porque a escola deve se comprometer também com a formação da identidade negra de crianças, adolescentes e jovens. E nos fez ver na prisão e morte de jovens negros o exemplo maior de nossa omissão e do racismo persistente em nossa sociedade.

O saber, em geral, tem um gosto amargo, porque ele nos cobra, e nos faz enxergar a realidade como ela é. Muitas vezes, é mais fácil não vê-la, ou fingir que não a vemos, porque, para transformarmos a realidade, o primeiro passo é conhecermos a realidade, para nos comprometermos com a mudança e sentirmos a sua necessidade. Toninho Canecão, no ato de assinatura do TAC, nos disse que a escravidão foi um veneno muito amargo dado ao povo negro e que, mesmo em momentos importantes e de esperança de que as relações sociais se transformem, como o do dia 06 de maio, o gosto amargo é sentido.

Como nos caminhos da educação, dos ensinamentos e aprendizados, o dia foi cheio de percalços, sentimentos, emoções, palavras, saberes. O caminho que começamos a trilhar com o TAC não será fácil para nenhuma das partes envolvidas, muitas vezes terá obstáculos e conflitos, mas não podemos ignorar o fato de que começamos a trilhá-lo. De que para os caminhantes, para todos e todas que decidiram entrar em movimento, como disse o poeta, o caminho se fará ao caminhar. De que, se caminharmos juntos, sairemos desta caminhada, todos e todas, seres humanos melhores, e de que pavimentaremos outros caminhos para as novas gerações.

A Fazenda Santa Eufrásia, ao cumprir todos os itens do TAC, estará inaugurando novas relações com as comunidades negras do Vale do Paraíba. E prosperará porque o Vale do Paraíba, até o momento reconhecido apenas como o Vale do Café, poderá ouvir e reconhecer o Vale dos Tambores, aquele em que as pessoas também têm nome, têm rosto, e têm história, uma história de trabalho, de luta, de resistência, com muitos ensinamentos, valores, saberes, práticas e, em especial, carregada de generosidade e de solidariedade. Temos, portanto, a responsabilidade de fazer com que as novas gerações possam conhecer esta história e ter novas possibilidades de educação.

Que este dia, de muitos aprendizados, sentimentos e emoções, tenha nos fortalecido para prosseguirmos com o processo de desconstrução do racismo, de reparação, e de instauração de novos processos educativos, mesmo sabendo que eles poderão ter um gosto amargo para todas as partes envolvidas!

Elaine Monteiro
Professora da Faculdade de Educação da UFF,
Coordenadora do Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu
Gabriela Moscardini
Graduanda em Jornalismo na UFF